Monday, August 27, 2007

DISFARCES DA MALDADE


- Que é isso Liandra? Caiu o seu queixo?
- Ah? Gente! Pode continuar dando risada, caiu mesmo! E aí, o que houve?
- Apolo teve sorte. Caso Meriel houvesse demorado mais um pouco para encontrá-lo, certamente morreria alí, naquele quarto, cada vez mais exangüe.
- Meu Deus! Mas essa Valeriana! Dá vontade de passar em cima dela com um rolo compressor e depois picar pedacinho por pedacinho, com uma tesoura!
- Liandra! Que violência é essa?
- ...E queimar, um a um, cada um desses pedacinhos.
- Não se pode sequer brincar com coisas assim. Deixa disso. Não combina com você. Parece contraditório que uma história sobre alguém como Meriel inspire tamanho desejo de violência.
- Mas como não? Essa Valeriana é muito baixa!
- Pode ser, realmente. Mas o mundo está cheio de valerianas. Pessoas que não conseguem encontrar dentro de sí mesmas nada que valha a pena e vivem com o objetivo de exaurir quem possui valores.
- E você não acha normal a gente sentir indignação e repulsa por pessoas assim?
- ....É, acho que sim. Mas de certa maneira especial. Não podemos ser cúmplices do mal, mas não podemos querer o direito sobre a vida e a morte desse tipo de gente. Não podemos odiar alguém, por nos indignarmos com sua capacidade de ódio.
- Assim fica difícil. Esse critério de justiça é complicado.
- Eu também achava que sim. Mas veja bem, não o é, de fato. Se você procurar sentir com o coração e não racionalizar nos padrões culturais. Suponha que existe aqui, dividindo nossa vida, alguém de sentimentos baixos como Valeriana. De que adiantaria o nosso ódio por ela? Enquanto que, se nos cuidassemos e não permitíssimos simplesmente que ela pudesse exalar sua maldade, não estaríamos compactuando nem com ela, nem com o mal, já que não permitimos nos contaminar por ele, não nos violentamos sendo igualmente baixos em nome da justiça.
- Ah, Aldo! Quer dizer que se Valeriana estivesse aqui, agora, apertando aqueles olhos ruins em cima de você e tentando espremer seu coração como se fosse uma laranja, bebendo seu sangue, você ia sorrir e dizer: não faça isso, Valeriana, está errado, minha filha?.... Que foi?
- Nada. Bem, não é isso. Eu me defenderia, com unhas e dentes se preciso fosse, mas apenas assim, como auto-defesa. Para fazer isso eu não dependeria de sentimentos baixos. Posso me defender, preservar a minha integridade física, sem permitir-me odiar quem quer que seja.
- ....Você está mesmo bem? Empaliteceu, Aldo!
- Só um ligeiro mal estar. Aquele monte de doces que comemos.....
- Sei.....
- Creio que, de qualquer forma, Valeriana não representa o lado mais perigoso do mal.
- Como assim?
- Bem, Valeriana nunca soube disfarçar com eficiência a estupidez de sua alma. Era tão agressiva e estúpida, tão ambiciosa e ansiosa, que não tinha paciência suficiente para a dissimulação do seu ódio por tudo e por todos. Seus objetivos eram claros, ela queria destruir o máximo possível, destruir sentimentos, pessoas e tudo mais que encontrasse pela frente.
- E aí? Continuo sem entender....
- Quero dizer que pior é a pessoa dissimulada, que sente o ódio profundo, o mesmo ódio de Valeriana, mas que o disfarça com palavras e ações dúbias.
- Sei...demônios travestidos de anjos...
- Nem sempre o que a boca professa, a mente e o coração admitem. Há pessoas cujas palavras são perfumadas, mas as ações, escondidas e dissimuladas, fedem a enxofre do pior. Conheci uma pessoa assim.... tinha olhos bondosos e sorriso simpático. Dizia-se extremamente religiosa e exigia das pessoas posturas de santo. Mas quando ninguém a observava, deixava o fel que escondia sair, como puz em uma ferida. Não assumia nunca os seus verdadeiros sentimentos. Agia nas sombras. Ludibriava crianças, tentando confundí-las e perante quem a podia julgar, dizia apenas palavras doces.....assim. Conseguiu guardar rancor durante anos das pessoas e não hesitou em prejudicar seus próprios filhos em nome disso. Tornou-os tão fúteis e falsos como ela.
- Bem, essa não me parece ser uma situação invulgar. É comum demais, até.
- Por causa da dubiedade humana. Há quem pense que a mistura de bons e maus sentimentos leva ao perdão divino. Seria uma impropriedade divina, se assim fosse.
- Não se pode mudar o mundo.
- ....Estamos aqui para isso, não? Ou por que seria?
- Não sei, não sei....É, deve ser...Eu não entendí uma coisa....No mesmo instante em que Valeriana atacava Apolo, quando o seduziu, Meriel saiu de seu corpo físico e a encontrou grávida, em outro espaço de tempo?
- É, parece que sim. Eu entendí que naquele instante Meriel captou exatamente o que ocorria, além do momento. Quer dizer, ela não apenas soube aquilo que ocorria naquele instante, como em um desdobramento de tempo, viu que uma nova vida surgia, conforme Valeriana pretendia ao seduzir Apolo. Como se estivesse no futuro.
- Mas ela devia é ter sonhado com isso antes e de alguma forma ter impedido que Apolo fosse seduzido por essa malvada.
- Sob essa ótica, a natureza deveria destruir o homem antes que surgisse...no momento em que se enunciasse a sua existência, para evitar o caos em que seria transformada!
- Ah, quer dizer que na sua opinião os acontecimentos são inevitáveis? Não se muda o destino?
- Absolutamente, muda-se sim. Meriel dizia que nada é definitivo e que nós criamos o nosso futuro todos os dias. O nosso amanhã vai depender do que somos hoje.
- Mas e a ação dos outros? Não creio que dependa apenas de nós mesmos o nosso futuro.
- Não sei Liandra, há tanta coisa que não consigo ainda definir. Mas é provável que haja, acima de tudo, a necessidade de desdobramentos. Aquilo que não depende de sua vontade ou que é impossível para você transformar ou evitar, certamente deve ter um peso no futuro.
- Aquela história do “há males que vem para o bem”.....Deixa para lá, senão vamos levar a vida inteira discutindo isso. Quero saber o que houve com Apolo.
- Onde estávamos?

( trecho do livro "A Colina" - MM)

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