Wednesday, August 02, 2006

A traição na literatura


(...)Pode não ter sido a causa do que aconteceu a seguir, mas sem dúvida, os anos de cricri de Genoveva no ouvido de Francesco, mais o anjo que nascera dela sem explicação, contribuíram para o desfecho. Um desfecho que teve como participante especial a peituda Gina.
Gina também enfureceu quando Apolo desmanchou o possível casamento, arrumou as malas e partiu. De início ela colocou em Genoveva toda a esperança de te-lo de volta. Mas quando sentiu que ele sequer se abalava com as ameaças e descontrole da mãe, considerou que deveria colocar seu próprio plano em ação, para não ficar sozinha naquele vilarejo, onde existiam 10 mulheres para cada homem.
Frustada com as tentativas, mesmo realizando todas as simpatias que as velhas mais velhas do lugar lhe haviam revelado, Gina analisou cuidadosamente Francesco. Sabia que o velho tinha uma queda por ela, que pelo menos contava com todos os atributos que a juventude poderia fornecer.
Pois bem, uma tarde aguardou pacientemente que a chuva de impropérios de Genoveva cessasse. Na nova rotina, Genoveva saía entre resmungos, chamando Gina para que a acompanhasse em um passeio, onde continuava a despejar palavras até que a garganta secasse e elas retornassem á casa para tomar o café.
Nesse dia porém, Gina conseguiu levar Genoveva até a casa da velha Vitini, convencendo-a de que poderia, através da leitura em um copo de água, saber se o filho haveria de encontrar a moça que buscava no Brasil e mais ainda: quem sabe, cochichou-lhe ao pé do ouvido, encontrar alguma simpatia que fizesse Apolo sentir saudades definitivas da Calábria e de sua mãe. “ O poder do coração de mãe completa qualquer coisa”, disse, convencendo Genoveva de vez.
Assim que a mulher sentou-se com a velha, Gina saiu e retornou à casa de Francesco, que mantinha-se apático sobre uma cadeira, balançando os chinelos velhos sob uma réstia de luz do sol que entrava pela janela. A vizinha, uma calabreza que tinha humores semelhantes aos de Genoveva, pendurava roupa ao varal e viu quando a moça, fazendo trejeitos, inclinou-se sobre Francesco, deixando o decote mostrar dois montes de seios que ele jamais havia visto na vida.
Mas a tal calabresa nada falou à Genoveva, pois lhe tinha uma birra enorme desde que haviam brigado por causa dos varais que serviam para pendurar a roupa lavada. Genoveva insistia em te-los vagos quando bem entendia, chegando certa vez a expulsar as outras mulheres dalí, aos tapas e puxões de cabelo. Assim, não pôde contar sequer com alguma intriga que lhe abrisse os olhos a tempo de manter o marido esparramado indefinidamente sobre a cadeira velha.
Quando percebeu que alguma coisa andava fora dos eixos, Genoveva confundiu-se. A última coisa que ela poderia imaginar era que Gina tivesse algo a ver com a súbita mudança em Francesco.
Ele passou a tomar banho todos os dias, mantendo desde então o rosto magro cuidadosamente escanhoado. Pior que isso: passou a usar loção após barba, em quantidade tamanha que a casa passou a cheirar, o dia inteiro, a um aroma cítrico.
Boaquiaberta, a mulher não sabia nem quais frases retirar de seu enorme repertório de impropérios para ridicularizar o homem, pois durante quase trinta anos de sua vida o havia mandado tomar banho, chamando-o de suino. Agora arrependia-se, tamanha a quantidade de cuecas que ele punha para lavar.
- Veja Francesco, veja. Esta cueca sequer está suja! - choramingava então, retirando do monte de roupas usadas as peças que, agora, ele trocava duas vezes por dia. O homem, sem se abalar, respondia que, provavelmente, a aparente limpeza das peças era a prova de que os seus olhos estavam fraquejando por causa da idade. E que, pelo sim ou pelo não, de qualquer forma, que se alegrasse e lavasse a roupa, que tanto pedira a Deus que ele trocasse, sem reclamar.
Foi por essa ocasião que, surpresa, reparou que os olhos de Francesco não mais estavam sonolentos, mas abrindo-se claros como o dia e brilhantes como um lago no verão. Cada vez mais cismada e confusa, ela o via sair todo final de tarde, depois da sopa, deixando o seu rastro cítrico do pós-barba, que permanecia pairando no ar - e no olfato de Genoveva - até ele retornar e novamente encher o ar com o aroma.
- Esse seu perfume me arde o nariz! - dizia, na esperança de que ele lhe desse uma resposta atravessada que a deixasse furiosa e lhe permitisse despejar verborréia suficiente para que ele retornasse ao seu odor de coisa guardada e nunca lavada.
Mas Francesco permanecia calado, concentrado em apressar as colheradas da sopa, que engolia mantendo o olhar alheio à cena e preso em algum outro espaço, ao qual Genoveva não tinha acesso algum.
Genoveva começou a sofrer de uma insônia crônica, que iria acompanhá-la pelo resto da vida .
Acordava, pontualmente, fosse qual fosse a hora em que adormecesse, às 3 da madrugada.
Depois de lutar inutilmente com o travesseiro, contando carneiros que acabavam transformando-se em minhocas ou baratas, Genoveva levantava-se e ia observar Francesco, irritadíssima com o sorriso nos lábios e a sua expressão tranqüila durante o sono. “O que é que está acontecendo com esse sujeitinho à toa?”, pensava durante as quase duas horas em que permanecia alí estática, desconsolada por não ter algum poder que lhe permitisse invadir a mente de Francesco e o maldito sonho que o fazia revirar as pálpebras e suspirar.
Por via das dúvidas, tentou por várias vezes conversar com ele, enquanto o pobre encontrava-se imerso em seus sonhos. “Francesco”, repetia ela, tentando, quem sabe, hipnotiza-lo, “Francesco, diga-me, o que há? Por que é que você está tomando banho todos os dias?....”
A não ser em uma ocasião, quando ele roncou forte e disse que a pipa perdera o rabo, ela nunca conseguiu nenhuma resposta (...) (A Colina, de Mirna Monteiro)

3 comments:

  1. Olá
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    Célio Martins

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  3. Sandra Aparecida Rossini12:10 PM

    Boa tarde,li este capitulo e fiquei interessada no livro mas procurei em diversas livrarias e não encontrei.Gostaria muito de compra-lo,como faço?Obrigada,abraços

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