Tuesday, August 29, 2006

A ESSÊNCIA DO MAL







- O que houve? Por que essa cara?
- ....Bem...é que, em meio a tanta violência, que acontecia de tal maneira, com tal estupidez...como pode Meriel ter conseguido entrar em um local vigiado, com gente armada e sob ordens militares e levar seu pai e seu irmão? Assim como?
- Os padrões de Meriel não eram comuns. A força que a alimentava e a fortalecia não era motivada por sentimentos humanos que se originam da fragilidade material. A sua fonte de força era divina, pois para ela os valores de vida não eram superficiais, mas universais. Sabe, encontrei em seu diário uma página onde ela retratou-se com uma lágrima, as mãos voltadas para o céu, onde escreveu: “Tenho mil anos e estou há anos luz do meu mundo”. Ela tinha absoluta consciência dos mistérios que nos cercam. Para alguém tão sensível, a violência e a maldade são como espadas perfurando a alma. Essa era a dor que sentia ao transformar-se em luz e retirar o pai e o irmão das masmorras da repressão. Uma dor que permaneceu, pois a sua força era insuficiente para evitar que tantos outros sofressem!
- Isso tudo é muito cruel!
- Pois era essa a pergunta! Por que a humanidade buscava o caminho mais difícil e doloroso? A maneira como as pessoas agem é incompreensível. Seria mais fácil para todos viver em harmonia e equilíbrio do que o contrário.
- Meu pai diria que o mundo perfeito é anseio da ingenuidade.
- Sei, sei, é este o pensamento das pessoas quando se sentem impotentes diante da insensatez humana.
- Mas eu não acredito que as pessoas nasçam más, acho que elas tornam-se más!
- Ora Liandra! Isso sim é ser ingênua! As pessoas tornam-se más?
- Por que não? Nem todos têm a chance de conhecer e desenvolver a compreensão do mundo!
- Que quer dizer? Que nos dividimos entre aqueles que constroem e aqueles que destroem, na dependência de lições de casa?
- Não é bem assim! Acredito que o problema reside na maneira como a sociedade está estruturada. Há óbvia intenção de confundir as pessoas. Quanto maior a confusão, mais fácil fica para o sistema dominar essa mesma sociedade. Concorda?
- Em parte, sim, em parte. Talvez o sistema aproveite magnificamente a futilidade humana, essa preguiça em pensar, em buscar respostas, em se aperfeiçoar como ser. Mas basicamente parece-me que existe uma relutância em assumir. Essa imagem do bom e ruim, dos extremos entre o bem e o mal!
- Você está querendo dizer que as pessoas situam-se apenas nesses extremos?
- Não apenas, mas principalmente. Parece-me que chegamos com nossas tendências delimitadas.
- Não dá para concordar com essa idéia. Se assim fosse, qual a razão? Se a humanidade divide-se entre Deus e o diabo....
- Pois a mim parece lógico. Veja bem, a eterna luta do bem e do mal. Ou você é bom ou não é, não é assim? Ou tem sentimentos, que o fazem sentir a dimensão da vida, a maravilha da natureza, ou desdenha tudo isso por não poder sentir. Em outras palavras, quem sufoca, ameaça, não sente, é frio como pedra, não respeita ao semelhante, esse está do lado oposto a quem sente, respeita, maravilha-se com a perfeição divina, consegue sentir o que outra pessoa sente, ouve o bater outros corações além do seu!
- Pois é!...
- É...o mal tem corpo, tem essência, é concreto...
- Pode ser que não sejamos inteiramente ruins ou inteiramente bons.
- Ué! Como é não ser inteiramente ruim? Pisar na cabeça de alguém só de vez em quando, ao invés de sempre? Ou ser bom vez por outra. Não, não, não, um erro consertado leva à ausência desse erro, mas uma vez que se pratique sentimentos baixos ou pouco nobres, não se é bom, se é ruim. E ser bom vez por outra também é ser ruim.
- Mas dessa forma você está transformando o bem e o mal em entidades distintas e não sentimentos!
- Exato!
- Ora, não concordo!
- Suponha que haja a clonagem dupla de um indivíduo. Teremos uma espécie de gêmeos, certo? Veja bem, a mesma genética, a mesma influência do ambiente, a mesma dosagem de orientação e, digamos, de amor!
- Serão idênticos, claro!
- Mas, assim como os gêmeos idênticos, terão personalidades distintas!
- Essa é uma projeção por sua conta e risco. Não conheço clones e nem temos notícia de que uma dupla dessas teria personalidade distinta!
- Os seres são iguais na forma, mas diferentes em essência. Suponhamos que um dos clones seja alguém dócil, de caráter, interessado no mundo e com capacidade para exercer o bem, enquanto o outro é egocêntrico, passional e insensível, considerando a vida alheia de pouco ou nenhum valor. O que diferencia ambos?
- Não sei, são absolutamente idênticos, inclusive na influência do ambiente...
- O que diferencia esses clones, assim como aos irmãos, aos gêmeos e ao resto da humanidade é uma coisa apenas.
- É?
- A essência!
- Como assim? Você está falando da alma! Mas dessa forma você ainda exclui a possibilidade do bem e do mal serem sentimentos!
- Exato! O Bem e o Mal são entidades distintas, tem personalidade e forma distinta. Assim como o Bem, o Mal atua por si. E isso que enfrentamos neste mundo Liandra. O Mal não é abstrato, é concreto! Tem essência! Mas nossos olhos distraídos apenas enxergam o resultado dele, como os escombros deixados por um tornado (...) (“A Colina” de Mirna Monteiro)

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