Wednesday, March 05, 2008

Sementes de abóbora...


categoria- literatura


(...) Das Dores foi avisada por um colega, responsável por outro distrito, de que tivera de colocar a sua filha Carla dentro de uma sala e trancá-la, porque a moça estava descontrolada e arrancara um naco do braço de um policial, tamanha a força de sua mordida.
Estava constrangido, porque os tapas e pontapés que Carla teria dado haviam rendido no revide um braço deslocado e um olho roxo.
Ao chegar à delegacia Das Dores encontrou Carla sentada no chão, com a roupa suja e rasgada, o rosto inchado e o braço em uma tipóia improvisada.
Sentindo-se abalada e sem forças, sentou-se ao lado dela e a abraçou, sem nada dizer.
Sentia-se frágil como nunca havia se sentido antes. Como delegada, considerava-se proprietária de algum tipo de imunidade absoluta. Um braço ou uma perna...pelo menos um dedo mínimo... do corpo do poder!
No entanto, a sua filha ali estava, presa, espancada e humilhada! E ela nada podia fazer!
- Mãe, não adianta ter ilusões. Este é um mundo porco, onde ninguém é livre porra nenhuma! Tem montes de merda controlando a vida da gente! Tem uma coisa chamada sistema financeiro que tem poder de vida e morte sobre todos os humanos, ninguém te escapatória e quem pensa que é livre é imbecil, porque somos todos escravos, fazemos trabalho escravo e morremos nos quilombos urbanos!
Das Dores estava inconformada com o ar de tristeza de Carla. Não sabia o que responder.
Carla soluçava.
- Sabe, mãe, o que é pior de tudo? – perguntou, olhando entre lágrimas para Das Dores – O pior de tudo é que quem faz esse mundo de merda somos nós mesmos!

(...)Desde esse dia, Carla não mais sorriu. Recolheu-se a um mundo particular, fechando as portas a quem quer que fosse,
Por mais que todos tentassem alegrá-la, ela respondia com um meio sorriso, apertando novamente os lábios, como se sentisse alguma dor.
As vezes observava Anna, sentada ao seu lado, percebendo o quanto ela se preocupava com seu distanciamento. Uma tarde olhou em seus olhos e disse que o amor que a amiga lhe dedicava era insuficiente diante do ódio no mundo ao qual pertenciam.
- Não é possível ser feliz em um mundo como este – repetia.
Anna contestava, dizendo que talvez esse fosse o verdadeiro desafio da vida, o de conseguir sobreviver e manter-se inteiro, de corpo e alma, em uma sociedade poderosamente hipócrita.
- Não, não e não - respondia Carla irritada - As pessoas são burras e más. Não entendem, são facilmente enganadas e distorcem a realidade...Passar por este mundo sem contaminar-se, mantendo a alma pura como a de uma criança, é um desafio impossível!
No fundo de seu coração, embora consciente da ignorância que permeava seu caminho, Anna silenciosamente concordava.
- Não é possível aceitar tantos erros, nem é possível corrigir nada disso - continuava Carla com a voz desanimada – O ser humano é defeituoso demais, parece o mesmo animal primitivo chutando os outros para fora de sua caverna, onde escondeu os ossos para roer. Não vale a pena!
Falava com um fio de voz, cada vez mais baixo, como se estivesse se apagando. Não reagiu ao abraço de Anna.
Pobre Carla!
(...)
Foi por essa época queAnna começou a desconfiar que não era mera impressão e que realmente havia perdido a memória de coisas fundamentais. Nas suas lembranças havia grandes espaços em branco, como se registros tivessem sido apagados com uma borracha.
Foi um lento retorno ao domínio dos conhecimentos perdidos.
Mas não a tempo de evitar que a tragédia se abatesse sobre Carla!
Certa tarde, ao retornar para casa, sentiu falta da prima. Das Dores, Júlio e as crianças não sabiam dela.
Anna sentiu o coração apertar-se. Percebeu claramente o risco de uma tragédia. Correu ao quarto de Carla, sabendo que deveria procurar alguma coisa. Não encontrando nada de diferente, foi para o seu próprio quarto e viu, sobre a cômoda, um grande envelope branco.
Dentro dele havia um bilhete, escrito por Carla.
“Querida prima e amiga, há coisas que não podem ser explicadas. Sei que vocês me amam, não me importo com Douglas e aquela Hellen, que não passa de uma loura aguada com olhos de vidro fosco. Eu lembro bem dela, que quase morreu de ódio quando nos casamos e acho que, agora, o Queixo Quadrado merece aqueles gambitos finos e brancos e aquelas mãos ossudas.
Mas como eu já lhe disse, o amor de vocês não é suficiente diante da força da maldade que encontro por todos os lados. Acredite, até dentro de mim.
(...) A humanidade não passa de um amontoado de cabeças vazias, tão vazias quanto o coração e por isso todo mundo está secando. As pessoas mudam de cara por não suportarem a própria imagem, fogem de si mesmas como o diabo da cruz.
É estranho, não é? Muito estranho. Tão estranho quanto esta carta aqui e a cara que você deve estar fazendo ao ler este amontoado de besteiras. Hi,hi,hi, isso é uma risada!
É que estou muito inspirada.
Me perdoe, diga às crianças que eu fui qualquer coisa que não sou, despeça-se de minha mãe por mim. Eu não suportaria fazer isso pessoalmente.
Se quiser lembrar de mim, lembre-se que eu sou aquela que cuspiu no sistema. Que ele vá para aquele lugar e que os poderes mundiais caguem sementes de abóbora!”

Logo abaixo, em letra miúda, Carla havia invertido o nome, assinando “Alrac”.
- Por que sementes de abóbora? – surpreendeu-se Das Dores (....)
(Trecho do livro "O Circulo", MM)

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