Tuesday, August 21, 2012

A FORÇA DE CARAVAGGIO

Intensa, forte, iluminada. Estas são algumas das características da obra de Caravaggio, um pintor italiano que viveu entre 1573 e 1610. Uma vida curta, mas intensa, turbulenta, marcada pela rebeldia e pelo inconformismo, que podem ser observados em suas obras, com tamanha força e crítica, que indignou a sociedade da época, premida pelo rigor da Igreja.

Sentia-se à vontade nas tavernas, nas ruas, em contato com o submundo abominado pela aristocracia. Frequentou em fases de sua vida ambientes cultos e refinados, mas não hesitava em troca-los pelo prazer de conviver com a pequena burguesia e a ralé. Era um homem rude e carnal, que transforma-se em luz e sombra  nas traduções da vida, dos sentimentos humanos e de regras e comportamento e pensamento que não aceitava.
Caravaggio morreu da mesma forma que viveu: procurando absorver a vida, intensificando suas cores e seus dramas e potencializando a natureza. Depois de uma vida de conflitos, que envolviam pelejas e duelos, feriu-se gravemente na ponta de espadas.

O seu estilo é considerado barroco, embora bastante marcado pelo renascentismo contra o qual ele reagia. Mas a força de suas cores, o realismo de sua imagem e a iluminação de seus ambientes demonstram que Michelangelo Caravaggio foi único, iniciando o tenebrismo, com a projeção de luz sobre as formas e criticando a manipulação dos conceitos do cristianismo. Belíssimo resultado!



A obra Conversão de São Paulo é considerada uma revolução na iconografia religiosa. O cavalo é uma força e se ressalta na imagem. Não se vê o santo? Ora, São Paulo, o homem, caiu ao chão ofuscado pela visão de Jesus, na estrada de Damasco. A iluminação é belíssima, parece brotar do foco de luz vindo de cima, banhar o ventre do cavalo e inundar de claridade o rosto do santo. Colocando o centro do afresco no chão, Caravaggio salienta a insignificância do homem perante a divindade.

Davi com a Cabeça de Golias. Violência e a beleza do adolescente. Dizem que a cabeça decepada do gigante é um auto-retrato de Caravaggio. Pode ser: por essa época, em seus últimos anos de vida, ele mostrava desalento e mágoa, sentindo-se cansado e atormentado pela perseguição dos adversários, aos quais, antes, provocava.
Bacchus: retratado com feições femininas e delicado em sua postura, sugerindo a masculinidade mesclada ao feminino. Um Baco hermafrodita que irritou a aristocracia da época. Aparenta claramente um desafio à questão do poder, que em ambiente ébrio manifestava a versão feminina e frágil do homem.

A Morte da Virgem Maria a retrata com o ventre inchado, os pés para fora do leito, como uma mulher da plebe que sucumbisse de inanição ou de parto, numa atmosfera densa e um ambiente de miséria. A imagem desmistificada. Escandalizou pela suposição de que Caravaggio teria utilizado como modelo o corpo de uma mulher que havia morrido afogada.

O narcicismo, que Caravaggio parecia interpretar como um auto-engano ou o desconhecimento da própria alma: observe que a imagem reflete sentimentos diferentes.

A Cabeça da Medusa foi feita em óleo sobre tela colada sobre um disco de madeira de choupo, mostrando uma imagem extremamente rústica e expressão de surpresa mesclada de terror diante da violência final. A mesma Medusa que petrificava os seres foi presa para sempre em sua própria armadilha. (Mirna Monteiro)

Thursday, August 02, 2012

DOMINADOS E DESCONTROLADOS

Dois extremos de comportamento parecem marcar o cidadão em um momento onde valores éticos se confundem com disparidades que invadem o meio e destroem noções de cidadania: a apatia que crê na fatalidade desse processo e a revolta extrema, que leva um cidadão pacato a agir de forma violenta.
De uma maneira natural, esse desajuste é reconhecido popularmente. O termo popular "zumbizado" está se tornando comum e se refere ao estado de aceitação incondicional de tudo que é ditado pela mídia, seja um produto, seja um comportamento, seja uma informação, que ainda que destituída de provas, é aceita como arauto de alguma realidade. 
Em outro extremo ao zumbi moderno, aparece outro comportamento preocupante: o inconformismo com a situação de absoluta vulnerabilidade do cidadão, não apenas diante da violência marginal, mas da ausência de ações eficientes que impeçam o abuso de seus direitos nos mais variados campos. Surgem as ações imprevisíveis de violência daquele cidadão comum, que vivencia o seu "dia de fúria" por pressão de instituições e serviços que não respeitam a lei. 
É o caso da senhora de 73 anos, professora aposentada, que retornou furiosa ao banco para reclamar de um engano de uma funcionária. Levando uma arma na bolsa, ela passou pela porta  e acabou ameaçando o gerente. Caso também de inúmeras agressões feitas por segurados do INSS a médicos responsáveis por perícias, ou de pessoas que buscam aposentadoria e revoltam-se contra um atendimento mecânico e extremamente burocrático que nem sempre respeita a emergência de sobrevivência de quem trabalhou décadas a fio. Agências do INSS hoje tem aparatos de segurança que parecem incompatíveis e exagerados para o trato com idosos ou cidadãos doentes ou lesados pela atividade no trabalho.
Demora em processos leva pessoas ao desespero. Casos como o de um homem que aguardou anos por um resultado, sem poder trabalhar e sem recursos para a família. Ao saber que o auxílio havia sido negado atirou em um segurança no Juizado Especial Federal.
Pessoas que cometem violência no trânsito, com perseguições e tentativas de atropelamento por motivos fúteis. Vivenciamos exageros de torcidas de futebol, violências por discriminação racial, religiosa ou até política. Pessoas pacíficas que agem de maneira desesperada em filas de hospitais, e "armam barraco" em incontáveis situações criadas pelo comércio e por serviços. Professores são agredidos por alunos e alunos são vítimas de atiradores!
O que origina esse comportamento? A ausência de respeito às regras básicas de convivência, certamente. A partir do momento em que o conceito de respeito a ética fica cada vez mais diluído na massa da informação da mídia, maior é o rompimento do compromisso comum.
No século XIX,  Nietzsche já tentava diagnosticar a derrocada dos valores morais, quando parte da sociedade louvava novos conceitos baseados em um mundo que se industrializava e tornava-se operacional e produtivo, mas esvaziava seus princípios morais e éticos, duramente mantidos ao longo de séculos onde se buscou a medida mais razoável entre o poder econômico e a massa, fundamentais à uma convivência que, pretendia-se, fosse pacífica. 
No entanto a difusão da produção e do consumo acabou transformando o homem em um produto. Em seu estudo sobre a sociedade de consumo Jean Baudrillard lembra que a imagem, o signo, a mensagem, tudo aquilo que consumimos, forma um conjunto de ilusões que não resulta no equilíbrio da relação humana, muito pelo contrário.
Com a supressão de regras éticas e morais importantes, como a honra, a dignidade, a fidelidade, que acabam se tornando valores aristocráticos e portanto fora do alcance da maioria, vem a derrocada social, com a decadência da família como instituição básica da preservação desses valores, a predominância dos crimes, vícios, inveja, tudo que seria fruto do igualitarismo.
Que por sua vez nivela o ser "para baixo". Por exemplo, até a arte se transforma em uma expressão desprovida de sentido, de senso estético, de valor criativo, para se tornar simplesmente um ornamento ou um instrumento para chocar ou provocar.
A grosso modo e traduzindo o processo, poderíamos dizer que vivemos um momento onde longe de valorizar o elemento humano, a sociedade o oprime e o amolda em uma embalagem de massa de suposta liberdade, que na verdade é mais perigosa e escravizadora do que os feudos  nos tempos da escuridão. 
O resultado é uma profunda apatia e paralisação da mente diante do que se considera um processo natural e inevitável, ou uma insatisfação profunda que provoca reações extremas e violentas, pela mesma impressão de   aprisionamento e vulnerabilidade. 
O ser humano dificilmente se adapta a um ambiente programado, limitado e inóspito. Aumentam os problemas decorrentes da insatisfação pessoal, do medo da violência, do desencanto com a lei e da desconfiança de meios de comunicação que deveriam ser confiáveis, mas que se tornam contaminados. 
Ao contrário do que se convencionou, não houve um aumento da corrupção, mas sim uma consciência de sua existência e dos seus estragos em contrapartida à uma disseminação da impunidade que passou a atuar sobre o conjunto social. 
Para evitar  o caos o recurso é a recuperação dos valores que permitem o norteamento moral e ético, começando pelo topo e não mais pela base social que se descontrolou. Essa sim é uma ação histórica . "Cortar o mal pela raiz" implica em corrigir a corrupção onde ela começa, nos centros de poder político e econômico, moralizando instituições de maneira a permitir que a natural desigualdade social - considerando as diferenças individuais de  caráter e capacidade em todas as suas instâncias, reabsorva valores fundamentais a sobrevivência do meio.
O que não pode acontecer, além da inércia, é algum teatro onde haja punição programada para conter a insatisfação popular, como os espetáculos das arenas romanas. Se há intenção de reabilitar a sociedade e evitar o descontrole, que as ações sejam claras e ilimitadas, não se resumindo a algum caso específico, real ou forjado. E que todos admitam que um caso é isso: apenas um pontinho no mar de desajustes e corrupção que leva ao caos. (Mirna Monteiro)