Thursday, November 01, 2007

A MORTE ENTENDE A VIDA

A morte certamente é a única certeza humana, por mais que esta frase soe desagradavelmente simplista. Mas há outra condição causada pela morte que vagueia com a mesma determinação na boca popular ou nas altas discussões filosóficas: a morte jamais é enfrentada com ausência de emoção.

Medo, dor, sofrimento, raiva, resignação, são sentimentos comuns à morte. Seja a emoção proveniente de quem tem consciência de que irá morrer, como no caso da perda de alguém importante.

O que diferencia o tipo de sentimento diante da morte sem dúvida é a própria vida ou a qualidade da vida daqueles que enfrentam o rompimento. Não no que se refere ao poder econômico ou social, mas à capacidade filosófica ou mesmo religiosa, que levam a um enfrentamento que pode ser mais realista (não fatalista) ou resignado.


Escreveram que Sócrates, ao beber da taça que continha o veneno, foi orientado a andar até sentir as pernas dormentes. A certa altura apalpou as pernas e disse: - Quando chegar ao coração será o fim!
Naquele momento, Sócrates enfrentava a própria morte com absoluta serenidade. Sem fatalismo dramático, mas com realismo. Se houve medo, soube bem desdenhá-lo, voltando-se para Críton, um dos amigos presentes, e dizendo que devia um galo a Esculápio.
- Vais lembrar de pagar a dívida?
O grupo presente, diante das últimas palavras do filósofo, rompeu em prantos, chegando aos berros, como no caso de Apolodoro.



O que vemos aqui é um enfrentamento da morte que poderíamos considerar natural. Ora, Sócrates já havia ingerido a cicuta, depois de ter lutado para preservar a vida e perdido a batalha. Como qualquer pessoa que procura interpretar o universo, o filósofo bem sabia que o ciclo natural é inevitável e seu fim havia sido selado no momento em que ingeriu o veneno.

No entanto quem o amava e assistia a cena, não resistiu à tragédia do desenlace. Alguns com lágrimas sentidas pela perda, outros, como Apolodoro, de forma extremada e extenuada.

Quem parte leva saudades...quem fica, fica com o que?

Para onde foi quem eu tanto amo?
O que restou lhe guarda semelhança
Irá desfazer-se como pó
Pois é feito de pó!
Aquilo que aqui ficou e não posso ver
Vejo que nada é apesar de ser
Mas aquilo que se foi
E apenas se percebe
É tudo que mais desejo nesta vida...


Há poesia na morte? Para aqueles que enfrentam a partida de alguém a coisa não é tão simples. Filtrar essa realidade com pensamentos poéticos é tarefa quase impossível. No momento da partida o problema não é a morte em si, mas a ausência de quem se ama.

É essa a realidade a ser enfrentada. A dor da perda e o medo de nunca mais rever quem tanto se ama é torturante. Para superar essa dor, dizem todos, é preciso paciência. O tempo cura as feridas, cicatriza a dor e mantém a saudade sob controle.

Esquecer, para a maioria das pessoas, é impossível. Mas todos que passam pela perda, admitem que o tempo realmente suaviza. A mesma natureza que impõe a morte, também fornece o remédio para a cura das suas dores.

A dor da morte, que é dos que ainda não a enfrentaram, é traduzida das mais diferentes maneiras. Talvez o maior choque seja a constatação de que nosso corpo, que interpretamos como o absoluto, se transforme em uma embalagem vazia, com prazo de validade. Há aqueles que se apegam ao máximo aos restos (que antes eram o absoluto) e busquem artifícios, como o congelamento que trará na posteridade, em um futuro onde o homem assumir-se-á como Deus e trará de volta à vida o que parece ser uma embalagem descartável.


Quem sabe? Outros preferem calcar a esperança e diminuir a dor em monumentos, que todos os anos são visitados, em uma reciclagem de memória. O que é injusto, pois a importância de alguém não pode ser medida por prédios fúnebres e por mais amada que seja certamente chegará o dia em que esse lugar será abandonado, nas gerações que se sucedem.



Para aqueles que duvidam da morte e a interpretam como uma transição, com base em doutrinas religiosas ou esotéricas ou mesmo filosofia (no universo nada se perde, tudo se transforma), transformar-se em pó parece ser purificador, romântico e também higiênico, em um mundo super-povoado que não tem espaço físico, nem tempo, nem recursos para guardar restos que serão esquecidos.

Seja como for, a grande verdade é que o desafio da morte é ainda o mesmo dos tempos de Apolodoro, cujo sofrimento foi superado pela filosofia do próprio mestre. Lidar com a ausência daqueles que amamos tanto, eis o grande desafio. A morte em si não representa dor, sem esse vazio! É apenas um curso natural.

Mas o amor devotado a alguém, esse é o fundamento da morte, assim como será sempre o fundamento da vida. Nesse caso, vida e morte estão indelevelmente ligadas e equiparadas e uma não representa o fim da outra e sim um círculo, onde estão contido os segredos que mantém o universo em constante evolução. (Mirna Monteiro)