Thursday, August 17, 2006

Medo de Viver


(...) Uma madrugada sentiu-se tão incomodada, como se lhe faltasse um pedaço, que foi até o quarto de Das Dores, verificar se já tinha acordado.
Encontrou a prima imersa, com a cabeça embaixo do cobertor.
- Assim você sufoca! Precisa respirar bem, para poder descansar – avisou Anna, enquanto tomavam, apressadas, o café da manhã.
Os olhos de Maria das Dores lacrimejaram. Ela pareceu hesitar, mas diante da maneira franca de Anna, resolveu desabafar o que mantinha encerrado a sete chaves.
- Eu tenho medo!
- Medo? Como assim? De que?
- Não sei... de tudo eu acho. É um problema sério. À noite, na escuridão, eu sinto pavor e só consigo fechar os olhos se me esconder embaixo do cobertor ...
Anna não respondeu, olhando a prima, surpresa com sua confissão.
Das Dores deu os ombros.
- Pois é isso! Já tentei de tudo, fiz análise por três anos, tomei todos os chás que me mandaram, tomo banho morno, nada adianta, não adianta! Até em terreiro eu já fui, porque disseram eu estava com encosto!
- Mas você é tão corajosa em seu trabalho! Parece enfrentar muito bem os riscos!
- É, eu sei...Fico possessa quando vejo a violência, homens que violentam e matam, crianças que são vítimas de tortura. Você sabia, Anna, que houve um caso em que a própria mãe jogou o bebê contra a parede, porque ele estava chorando?
Parou, emocionada, procurando refazer-se.
Terminou de beber o café e encarou Anna.
- Nesses momentos, eu me revolto e sou capaz de tudo mesmo e não tenho medo. Mas na hora em que estou só, no momento em que preciso dormir, eu sinto medo!
Levantou-se e olhou através da pequena janela da cozinha.
- Eu sinto que a maldade está tomando conta das pessoas, como se elas estivessem sendo pouco a pouco, incorporadas pelo mal. É como uma epidemia de vírus... pouco a pouco...está se espalhando!
Virou para Anna, com a voz alterada.
- A maldade está se espalhando! Não há limites para a dor e o medo. Por isso eu não posso parar para pensar. Porque eu sinto pavor dessa realidade...Não consigo dormir!
Passou as mãos no rosto, onde uma lágrima havia escorrido.
– Esta vida é uma merda, é por isso que não consigo dormir! Vida de merda, em um mundo de merda! E....
Ouviram batidas na parede da cozinha, feitas pelo vizinho.
O rosto de Maria das Dores avermelhou-se.
- Não tenho sequer uma vida minha, não há mais privacidade! – berrou, socando a parede e acrescentando que o mundo não passava de uma grande privada sem descarga. Saiu apressada, deixando Anna perplexa, espremida na pequena mesinha no canto da cozinha (...) ( Do livro "O Círculo")

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